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  • Foto do escritorArquitetura Legal Brasil

Tinha Alvará para construir?



Este texto foi redigido alguns dias após o incidente ocorrido em Mauá, em 21 de agosto de 2020 e publicado num blog que não existe mais.


Embora tenha sido escrito há algum tempo, o tema continua relevante e merece reflexão, especialmente para aqueles envolvidos na legalização e regularização de imóveis, desta forma, trago novamente o assunto.


Logo após o desabamento de uma casa no município de Mauá, uma entrevista concedida pela proprietária do imóvel a um repórter do Jornal da Record trouxe a tona uma realidade cruel e preocupante.


Dado o contexto deste portal é tratar sobre Licenciamento de Obras, cabe uma reflexão sobre o ocorrido. Abaixo, compartilho um breve trecho da entrevista da proprietária ao repórter:

“— Tinha Alvará para construir?
— Não.
— Não era perigoso?
— Não.
— Não tinha medo de construir uma casa sem um acompanhamento de um engenheiro, sem Alvará, sem autorização?
— Moço... olha aqui onde a gente está. Você acha que alguma casa tem Alvará? Você acha que alguma casa tem engenheiro? Você acha que alguma casa aqui tem alguma coisa deste tipo?”

É evidente que a ausência de um Alvará para a construção não foi a causa direta do desabamento. Já testemunhamos incidentes semelhantes onde a obra estava regularizada, com toda a documentação em ordem, e mesmo assim o resultado foi trágico.


No entanto, a presença de um Alvará indicaria, pelo menos, a intervenção de um arquiteto ou engenheiro civil em algum momento da construção. Isso poderia potencialmente identificar falhas na estrutura ou orientar melhor sua execução, proporcionando segurança à família e à comunidade local.


Ao questionar a falta do Alvará, é inevitável interrogar também a eficácia da fiscalização. Onde estão os órgãos públicos responsáveis? A Prefeitura não estava ciente disso?


A construção levou dez anos para chegar ao ponto em que estava, tempo mais do que suficiente para a Prefeitura verificar sua situação. Por sorte, não houve vítimas, apenas danos materiais, mas isso não absolve a omissão da Prefeitura em seu papel de fiscalização.


Após o ocorrido, óbvio, apareceram a Prefeitura, o CAU, o CREA, a Defesa Civil. Onde estavam esses órgãos durante todo esse tempo em que não apenas essa casa, mas toda a vizinhança estava sendo construída e continua sendo?


Não se trata de uma área invadida ou um morro ocupado por uma comunidade. Estamos falando de um bairro periférico, habitado por pessoas simples, que contam com infraestrutura básica, como: água, luz, esgoto e ruas pavimentadas.


O prefeito, ao visitar o local após o desabamento, declarou: “este é um dos bairros consolidados e mais antigos da cidade, isso foi uma fatalidade”. Segundo ele, a Prefeitura acompanha as obras em andamento na cidade.


A Defesa Civil afirmou que investigaria rigorosamente tanto o acidente quanto a construção. O CAU e o CREA realizaram o registro fotográfico, a coletaram informações, disseram que aguardariam o resultado dos laudos técnicos para finalizar suas apurações.


No entanto, passado algum tempo desde o incidente, pouco ou nada foi feito. As obras na região continuam como antes, inclusive no local do desabamento.


Não pensaremos que isto é uma exclusividade do município de Mauá, isto é algo recorrente em praticamente todo o território nacional. A autoconstrução não é exclusividade das favelas ou das classes mais baixas.


Por que constroem irregularmente? É muito caro? A legislação é difícil demais de ser cumprida?


Não podemos ignorar que as regulamentações urbanísticas muitas vezes não se adéquam à realidade de grande parte das cidades.


Existem duas cidades: a cidade legal, onde os profissionais de arquitetura e engenharia trabalham, que representa menos de 15% do total, e a cidade real, construída sem critérios urbanísticos ou edilícios.


Na casa que desabou ou nas construções em sua vizinhança não se observa o respeito às normas de ocupação do solo, coeficientes de aproveitamento, recuos, gabaritos e outras regulamentações presentes na legislação.


A casa em questão possuía quatro pavimentos e mal tinha estrutura para aguentar dois ocupava praticamente a totalidade do terreno, possivelmente tinha problemas de conforto térmico por não ser bem ventilada, deveria ter dificuldade de circulação vertical com a necessidade de abaixar a cabeça para não bater no teto ao subir a escada.


O imóvel vinha sendo construído há uma década e já estava pronto para ser ocupado, pertencia à mãe da pessoa que deu a entrevista, o irmão também morava no local e ela, que estava desempregada na ocasião, iria se mudar com o marido e os 4 filhos em breve.


Situação bem recorrente da nossa realidade, uma que filha engravida, um filho que não tem condições de pagar o aluguel, então se visa utilizar o máximo possível do espaço existente.


Não tem mais como ocupar horizontalmente o terreno? Então aumenta a quantidade de pavimentos, sem ao menos averiguar se existe estrutura própria para isto. Cada vez mais comum ver nas periferias residências com 4 pavimentos.


Muito mais que uma dificuldade urbanística, trata-se de um problema social. O acesso à moradia onde as pessoas buscam as alternativas possíveis de sobrevivência.


Uma das poucas soluções oferecidas pelo órgão público para estas famílias que se valeram da autoconstrução, se é que isto pode se chamar de solução, são de tempos em tempos aplicar as chamadas leis de “Anistia”.


É um círculo vicioso: são criados planos diretores, leis de uso e ocupação do solo, códigos de obras, sabendo-se que são aplicáveis apenas a uma pequena parte da cidade. Depois de um tempo, uma “alternativa” é lançada para corrigir essa lacuna.


Esta “alternativa” de correção é aplicada pela Prefeitura muito mais para garantir novos recursos, seja pela taxa prevista ou na possibilidade do aumento de arrecadação do IPTU com o lançamento das áreas acrescidas, do que uma busca de melhora dos espaços urbanos e da qualidade de vida nas cidades.


Em São Paulo, por exemplo, ainda existe uma “anistia” em vigor que foi prorrogada várias vezes para permitir a regularização, principalmente devido à baixa procura.


Os pedidos de regularização feitos pela anistia de 2003, anterior à vigente, foram significativamente menores do que o previsto pela Prefeitura, e a situação atual parece estar seguindo o mesmo caminho.


O desinteresse em regularizar uma propriedade, a relutância em contratar um profissional qualificado antes de iniciar uma construção ou reforma, é lamentavelmente comum em nosso país.


Observe na resposta da proprietária do imóvel quando o repórter pergunta se não ela acha perigoso executar uma obra sem o acompanhamento de um responsável técnico. A negativa é categórica, não existe preocupação nenhuma com isto.


Por que isto acontece? É caro contratar um profissional? É luxo desnecessário? Temos culpa nesta situação?


Pesquisa elaborada pelo Datafolha em outubro de 2015, a pedido do CAU apontava que 54% da população economicamente ativa já construiu ou reformou imóvel residencial, ou comercial. Desse grupo, 85,40% fizeram o serviço por conta própria ou com pedreiros, mestre de obras, amigos e parentes. Apenas 14,60% contrataram um arquiteto ou engenheiro civil.


O Fantástico fez uma reportagem na mesma ocasião baseada nesta pesquisa (segue o link para assistir).


É assustador verificar que toda a classe de profissionais (arquitetos e engenheiros civis) brigam por um mercado de 15% enquanto temos um universo inteiro de oportunidades perdidas.


Não estamos falando apenas da população de baixa renda, conforme a pesquisa entre as pessoas de classe A e B apenas 25,80% procuram um profissional habilitado. Olha o quanto não estamos perdendo de trabalho e de condições para construir uma cidade melhor.


É preciso romper esta cultura da autoconstrução, o que não é uma coisa fácil. Não temos a educação para o planejamento, da preparação adequada, da observação de regras, mas tudo pode ser ensinado. Precisamos demonstrar a importância do nosso serviço.


Uma ação importante neste sentido foi efetuada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo na campanha do Dia do Arquiteto e Urbanista no mesmo ano da pesquisa realizada.


Uma campanha publicitária, bem feita, mostrou a Casa da Dona Dalva, no extremo da Zona Leste de São Paulo, visando explicar a todos que obras feitas com auxílio de um profissional habilitado acabam custando menos do que as construções apenas com pedreiros.


Pouco tempo depois a casa da Dona Dalva ainda foi eleita com a melhor do mundo pelo ArchDaily.


Pena que passado este tempo nossa situação não melhorou, arrisco até a dizer que deva ter piorado o que já era ruim.


Fica aqui sempre a esperança de dias melhores, cidades mais prósperas, um país melhor.




Carlos Capuchinho

Arquiteto | Urbanista | Especialista em Legalização de Imóveis e Aprovação de Projetos | Engenheiro de Segurança do Trabalho | Especialista em Engenharia de Incêndio

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